A coordenação do trabalho docente nas escolas atualmente

Graça Simões

Professora da escola EB23 Dr.ª Maria Alice Gouveia de Coimbra | Sócia do FPAE

 

Prelúdio

Este texto surge como eco de uma das “Conversas à Quinta” do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, na qual participei, sendo por isso apenas uma reflexão corrida, fluida, pouco estruturada e não explicitamente sustentada teoricamente. No entanto, é claro que no lugar do olhar confluem tanto o conhecimento prático (de mais de 30 anos de docência), como o conhecimento teórico incorporado (na mente e no espírito), com os trabalhos do mestrado e doutoramento.

Na orientação da “conversa”, pensaram-se três vetores globais, que servem agora a organização do texto:

  1. As tensões que sempre se mantêm por entre as ondulações políticas, as decisões, as não decisões, as incógnitas…
  2. Os princípios ou eixos centrais da coordenação do trabalho docente, numa perspetiva de compromisso com a Escola e com a Profissão;
  3. A alavanca mais completa e disponível para a sustentação desse compromisso, numa lógica de emancipação – dos docentes, dos alunos, das escolas e das comunidades educativas.

 

  1. As tensões

A primeira tensão é estrutural, mas bem viva no momento com as mudanças do paradigma governamental, em que se cruzam medos e esperanças – é a da mudança-continuidade. O melhor indicador desta tensão são os documentos internos de coordenação, quase sempre desatualizados, rasurados, em reforma…

Esta mudança é muito perturbadora, sobretudo quando cai a meio de um percurso traçado, de um ritmo acelerado. A resposta é sempre de urgência, de reação, em sobreposição, presa ao que era e sem perspetivação ou reflexão; é o tempo que ajusta as coisas.

Neste ponto, afirma-se a ideia comum de que os docentes – e a escola – são tendencialmente conservadores, mas também a de que isso terá sido uma vantagem para a sua sobrevivência, como em todas as instituições. Mas se o acordo geral se faz em torno da introdução de melhorias, então haverá que encarar as mudanças.

A segunda tensão é também estrutural há já algumas décadas, e embora seja talvez a maior responsável pela descoordenação e sobreposição de instrumentos de regulação e controlo na escola, é aquela que menos se sente nos discursos e preocupações quotidianas, relegada para uma esfera de jogo político exterior, sem alicerce na Escola e nos profissionais – referimo-nos à tensão da centralização-autonomia.

Neste arrastar e remoer de discursos e arremesso de contratos de excecionalidade, vincaram-se dois efeitos contrários e ambos virais: o impulso para a quantificação e inscrição de dados e, por outro lado, a saturação, desinteresse ou mesmo aversão a tudo que seja organizar informação. Mas, sobretudo, temos a coabitação arrastada, pouco ou nada produtiva, de duas lógicas de viver a Escola – a da segurança e obediência, que prefere a cadeia de mando e as regras, mesmo que sem sentido; e a da autonomia e liberdade, que questiona os sentidos, quer ter palavra e responsabilidade. Claro que há sempre uma que vence e que determina o modo quotidiano de fazer na Escola, a começar (ou acabar) pelo estilo de liderança.

Esta é uma tensão complexa, de vários níveis, que se joga na opção mais lata do governo local da educação, reduzida à polémica “municipalização”, mas também no modo de coordenação e liderança de um departamento ou conselho de turma; em comum, o tomar a palavra.

A terceira tensão é a dos resultados-processos.

A acompanhar a complexificação dos processos e a constatação da impossibilidade do controlo universal, rigoroso e eficaz, não veio apenas a descentralização, mas também a teoria de que os modos de fazer aceitam e até requerem diferenças, porque o que importa são os bons resultados – “não olhar a meios para atingir os fins”, com toda a controvérsia ética, entre outras.

Esta tensão tem enfrentado dois constrangimentos. Primeiro, os modos não têm efetivamente autonomia – continuam e aumentam as conformidades, porque a forma das novas tecnologias é rígida e cega, mas de alcance talvez ilimitado. Segundo, porque é nos modos, ou seja, nos processos, que se passa o essencial do ato educativo e onde, portanto, é importante a regulação.

Trabalhar para os resultados tem deixado marcas preocupantes no desenvolvimento educativo das “massas”, com reducionismos bem comprovados e com impacto social. Apesar de tudo, será mais cómodo aceitar o controlo pelos resultados, até porque há imensas formas de os adequar às necessidades. Em relação aos processos, a regulação vai sendo fingida, ora no modo burocrático do relatório, ora no modo gerencialista da quantificação isolada, com perda do tempo precioso que sempre falta no quotidiano dos docentes.

A quarta tensão poderá ser lida como uma extensão das duas anteriores, mas merece que se destaque, por ser tão viva e determinante na vida das Escolas: a lógica profissional e a lógica burocrática.

A profissional, acionada como de sobrevivência, de resistência, mas envergonhada, tímida, sofreu muito com o deslaçar da aliança entre o Estado e os professores, com os ataques à sua competência e, sobretudo, ao perfil cívico e ético. Apesar de toda a competência técnica e mecânica, o ser pessoal e relacional continua a ser a marca distintiva de um bom professor. E a um profissional atribui-se liberdade e confia-se, respeita-se a sua autoridade… Não se pedem contas, regula-se de longe e levemente. Ora isto é mesmo o que por vezes irrompe, violentamente, no contexto extremo dos muitos contrários a este “paradigma perdido”. São constantes estas erupções no espaço de trincheira da sala de professores.

Ali ao lado, calada, ou mesmo no outro lado se si mesmo, mantem-se e revive a lógica burocrática, que se renovou com as novas tecnologias, e que se legitima pela normatização, na qual o que interessa são os procedimentos iguais para todos. Nem interessa para que servem, mas preenchem-se papéis, inserem-se dados. Nem interessa se são rigorosos, o que importa é cumprir as regras e exigências. Confia-se que alguém lhes dará bom uso, um uso justo e neutro.

Fica claro o desajuste de ambas as lógicas no quadro da evolução da sociedade e das políticas públicas, nomeadamente da educação, em que teoricamente se promove e espera um posicionamento mais nivelado e democrático de todos os atores, sob os princípios da transparência e da participação. No entanto, e na prática, tudo depende da construção de um posicionamento comunitário, numa lógica de emancipação de si e dos outros, incluindo os alunos.

A quinta e última tensão: competir-cooperar.

Todos dão conta das lógicas, esquemas e regras de mercado que se têm vindo a imiscuir dentro das escolas públicas, através de processos que foram deslizando, como os serviços de refeitório, os sistemas informáticos, depois as atividades de enriquecimento curricular… E finalmente, já de forma impositiva, intrusiva e abusiva, o exame e certificação no inglês.

Paralelamente, foi sendo feito o cerco com o crescimento das escolas privadas com contrato de associação e da associação de maior qualidade ao ensino privado. O processo de definição da rede escolar e da carta escolar foi amolecendo, com o pretexto da regulação local, mas com o efeito do rompimento de alguns equilíbrios, seja entre público e privado, seja entre as próprias escolas públicas. Observamos agora as escolas que lutam por alunos, recorrendo a estratégias de mercado, claramente desajustadas, e até ridículas, desperdiçando energias e desfocando do principal.

Assim, dentro das escolas, vai-se alimentando uma lógica competitiva que trespassa tudo, que teve (ou tem) o seu momento mais degradante na avaliação do desempenho docente, que se legitima facilmente na competição entre escolas (como se fossem clubes de futebol), mas que tem o prejuízo maior nos processos educativos e nas dinâmicas pedagógicas.

Não se recusam as lógicas competitivas em si mesmas, mas a sua virtude na produção de igualdade. Antes de competir, numa base justa, há que cooperar para chegar a ela.

 

  1. Os princípios

Implicitamente, já foram deixados rastos sobre os princípios de coordenação que parecem essenciais para conviver e conciliar estas tensões sem perder o rumo do mais importante. De forma solta e sintética, podemos apontar quatro:

– o princípio da autonomia e responsabilidade, assumida de forma individual, profissional, organizacional e comunitária; a cadeia hierárquica de comando é tão indigna de quem ordena, como de quem obedece, comprometendo sempre a riqueza e justeza das decisões;

– o princípio da emancipação, enquanto escolha livre e fundamentada, para a qual é preciso tempo de palavra, de debate, mas também o tempo da informação tornada conhecimento; é importante fazer-se sabendo porquê e para quê, dominando o sentido das coisas, com legitimidade profissional;

– o princípio da racionalidade, com as ditas preocupações de eficiência e eficácia, mas com a tecnologia regulada por política, ou seja, como instrumento ao serviço de ideias; a qualidade da imagem – profissional e organizacional – dependem muito deste cuidado com a racionalidade, e a qualidade da imagem não é tudo, mas tudo envolve;

– o princípio da transparência, com a necessidade de clareza e coerência da informação, garantindo o acesso democrático e o apreço público; são necessários bastidores e há zonas da Escola que precisam de ser “privadas” para serem genuínas e produtivas, mas tudo deve ser definido e claro para todos os intervenientes.

 

  1. As alavancas

A alavanca central, que estudei e experimentei, é a avaliação interna combinada com autoavaliação. Haverá múltiplas matrizes e nem todas servirão os princípios aqui defendidos, aparecendo muito como mais uma tecnologia de gestão, associada e até mesmo dependente da liderança de topo. Não sendo essa a sua maior virtude, também é importante considerar e cuidar do seu ajustamento à rede formal interna de coordenação, com uma função de gestão, portanto, mas ligada à base – departamentos e conselhos de turma, por exemplo:

– sustentando os processos educativos com um sistema racional de captação, circulação e mobilização de dados;

–  usando os números, mas indo além deles;

– criando coerência e segurança e evitando o fingir de conformidades, ou mesmo as pequenas fraudes perante a Avaliação Externa;

– evitando o controlo mecânico e intrusivo, adiantando-se a ele, fundamentando as soluções criativas e um sentido de responsabilidade mais autêntico;

– passando do nível da prestação de contas nominal, para a responsabilidade coletiva;

– criando mesmo uma competência coletiva, ou seja, mais do que uma boa coordenação, uma boa cooperação; coordenação de propostas e decisões e não apenas difusão de informação.

Claro que há duas outras alavancas essenciais que se enleiam com a autoavaliação, acreditando-se que também elas serão acionadas em simultâneo, e que são a participação ativa e crítica nas estruturas e na vida da escola, assumindo o coletivo como também responsabilidade própria – o nós antes do eu, e a formação profissional, inicial e contínua, no que podem contribuir para uma maior coesão e identidade, logo um maior poder de emancipação, de si e dos outros.

 

Donwload do texto de opinião

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