Administração Educacional: alguns sinais actuais da reconfiguração do campo

Jorge Martins

Universidade Lusófona do Porto | Centro de Investigação e Intervenção Educativa /FPCE-UP| Sócio e membro da direção do FPAE

 

Na última década, como resposta do neocapitalismo financeiro às sucessivas crises (monetária, económica e social) que abalaram de forma desigual as economias ocidentais e, em particular, a Europa, emergiram novas políticas que alteraram profundamente os princípios democráticos basilares a que estávamos habituados.

A extrema financeirização da economia, a obtenção rápida de mais valias, a regressão do Estado nas suas funções reguladora e redistribuidora, a submissão das políticas públicas às lógicas hiperconcorrenciais dos mercados, a desvalorização do trabalho e a austeridade generalizada, constituíram-se como os eixos estratégicos, e ditos “sem alternativa”, de um novo liberalismo global.

Portugal, economia débil e periférica no quadro da União Europeia, não podia escapar a este processo de realinhamento estratégico e, volvidos oito anos sobre o eclodir daquelas crises e após um pedido de empréstimo financeiro em condições creditícias leoninas, (sobre)vive na permanente ameaça dos mercados credores, das suas ortodoxias ideológicas e organizacionais.

É este contexto que marca a crescente mudança no campo da política e da administração da educação a que, por cá, vamos assistindo. E que marcas são essas? Algumas já vinham de trás, do tempo da débil “modernização pública administrativa” e dos primeiros sinais de gerencialismo, mas outras são consequência directa das imposições dos nossos credores financeiros. Fundamentalmente, estas últimas podem resumir-se a três temas/domínios: i) diminuição global da “despesa pública” da educação, ii) reforço da submissão das finalidades da educação e formação aos “imperativos” do mercado de trabalho e da economia e iii) redefinição do modelo de governance do sistema e dos seus actores.

Se estes domínios representam, em matéria de educação, a limitação e o realinhamento do “caso português” à norma da concorrência e da competitividade definida pelas instituições internacionais (UE, OCDE, UNESCO, BCE) e medida pelo PISA, pelo PIRLS e pelos rankings, por outro lado, eles assumem no contexto nacional marcas específicas relacionadas com o que resta do processo de construção da democracia e com o papel do Estado e das instituições públicas nesse processo.

Com significativos impactos que, na nossa opinião, redefinem o campo da administração educacional, vale a pena, por isso, abordar um pouco mais de perto cada um desses domínios/temas na perspectiva de clarificação do sentido daquela redefinição.

No primeiro domínio – crescente diminuição do orçamento da educação – observa-se hoje um quase nulo investimento central na renovação, requalificação e reapetrechamento do parque escolar dos ensinos básico e secundário. A estratégia dos últimos governos consiste em usar, de forma avulsa e experimental, instrumentos da contratualização público-público (primeiro através de contratos de execução e depois com contratos interadministrativos) para passar em definitivo o parque escolar para as autarquias locais (municípios) e para as suas associações (comunidades intermunicipais – CIM – e áreas metropolitanas – AM).

Aqui, sob a retórica legitimadora da descentralização, que esconde no seu farto seio quer a simples delegação temporária e/ou permanente de competências, quer a complexa transferência de propriedade e de meios, passando pela desconcentração de poderes de decisão, é todo um vasto programa político de nova administração pública educativa que está em curso envolvendo decisores e técnicos ainda sem formação adequada, sistemas municipais e intermunicipais de administração e controlo de base tecnológica informática ainda não suficientemente testados, e redes de comunicação com os utilizadores (escolas, associações de pais, centros de formação, empresas, etc.) ainda incipientes.  

Por outro lado, importa não esquecer que aquele programa político-administrativo abrange múltiplas áreas, desde o trabalho interdisciplinar e sustentado de concepção e planeamento do parque e da rede escolar até à gestão, administração e controlo de grandes sistemas que, constitucionalmente, devem continuar a garantir a democraticidade e a universalidade da educação, como sejam os serviços públicos de escolas, de transportes de alunos, de equipamentos e material didático, de refeições e alimentação, de integração de crianças e jovens com necessidades educativas especiais, de manutenção e apetrechamento de laboratórios, oficinas, bibliotecas, pavilhões gimnodesportivos, de instalação e manutenção de redes informáticas, de planeamento, financiamento e avaliação da prestação de serviços à comunidade e à educação de segunda oportunidade.

Na prática, isto significa que o papel de concepção e regulação do sistema geral e dos subsistemas específicos que estava reservado em exclusivo à administração central (desconcentrada ou não) e aos gabinetes governamentais de decisão política, passa agora a ser desempenhado pelos executivos municipais, politicamente escrutinados em eleições periódicas, pelos executivos das CIM e das AM, não eleitos, e pelos respectivos serviços de administração educativa que, na maior parte dos casos ou não existem ou são muito débeis do ponto de vista da sua qualificação técnica e da sua capacidade organizacional. Há, aqui, um claro alargamento do campo da administração e da definição de políticas educativas para novos locus de poder, acção e conhecimento que arrasta a emergência de novos actores e processos ainda muito pouco estudados.

Mas esta vasta translação de responsabilidades da administração pública central para a local não se faria sem que, ao mesmo tempo, e não deixando de usar (e abusar) também de outro, sempre eterno, argumento legitimador – a autonomia das escolas – se fizesse aquela que é a mais profunda “reforma dita modernizadora” do sistema educativo: a constituição acelerada (em menos de meia dúzia de anos) de agrupamentos de escolas de escala diversa, abrangendo a totalidade de estabelecimentos públicos de educação e reduzindo para menos de um terço o número de unidades orgânicas oficialmente registadas na rede escolar, supostamente servindo todo o currículo desde a educação pré-escolar até às ofertas diversificadas de ensino secundário.

As enormes poupanças, directas e indirectas, obtidas por esta brutal redução – cuja avaliação sistemática, sector por sector, abarcando despesas com os órgãos de gestão e supervisão, com o funcionamento quotidiano e com a bolsa de contratação de professores, ainda está por se fazer – não representam, contudo, um benefício sistémico, quer do ponto de vista gestionário, quer do ponto de vista da autonomia escolar. Pelo contrário, tais poupanças, de facto, representam o preço a pagar pela nova hiperburocratização da administração escolar que impõe o desenvolvimento implacável do controlo central sobre todos os domínios da vida escolar e a apropriação gerencialista dos seus processos e “produtos” (desempenho dos alunos, avaliação dos professores e das escolas, empregabilidade das formações, cumprimento das metas curriculares, comparação entre avaliações internas e externas, etc.) no sentido da obtenção de resultados que satisfaçam a trindade gerencialista da eficácia, da eficiência e da “satisfação dos clientes” (stakeholders).

Um tal controlo, que configura um tipo novo de recentralização e uma versão sui generis de autonomia das escolas, não seria possível sem o recurso administrativo ao “taylorismo informático que reduz frequentemente os órgãos de gestão escolar a simples dispositivos ao serviço da burocracia central para quem mais e melhor informação possibilitam maior controlo” (Lima, 2012:124)[1]. Na verdade, é a divisão, sequencialização e controlo de um crescente número de funções de administração e supervisão educativas, cujo suporte são poderosas plataformas informáticas de tecnologia fechada promovidas por empresas especializadas que detêm todos os direitos de concepção, manutenção e formação, que potencializa aquele taylorismo e transforma a natureza do próprio processo administrativo.

Também aqui estão presentes novas características da recomposição do campo das políticas e da administração escolar: desde o encurtamento dramático do tempo (o tempo para decidir, para responder, para implementar, para avaliar) até à simplificação das justificações (regras impostas pela tecnologia informática nos concursos, nas ordens de serviço, no acesso a fontes e a redes, etc.) passando por novos protagonistas com poder significativo que lhe advém da especialização/função (gestor informático, técnico especialista do programa x, responsável pela segurança, perito da empresa fornecedora de software, responsável por processos individuais, etc.) são várias as características que conduzem à subordinação do processo de decisão educativa face às tecnologias e o subtraiam ao ainda suposto espaço democrático da vida escolar.   

Quanto ao 2º domínio/tema – reforço da submissão das finalidades da educação e formação aos “imperativos” do mercado de trabalho e da economia – importa reconhecer que ele se liga directamente às orientações definidas pela U.E., em 2010, na Estratégia de Lisboa (Estratégia de Educação e Formação), que pretendia promover a competitividade económica europeia para níveis próximos dos EUA e dos países emergentes.

No contexto nacional, o traço mais impressivo desta estratégia consiste no alargamento da escolarização obrigatória dos jovens até aos 18 anos, conseguido através da promoção de ofertas formativas diversificadas, e de valor social muito distinto, quer no ensino básico (até ao 9º ano) quer no segmento do secundário (até ao 12º ano). A justificação política para esta 2ª expansão da escolaridade obrigatória surgiu com a oportunidade de um novo pacote de financiamento comunitário acessível, por concurso, aos agrupamentos. Estes, debatendo-se com sucessivos cortes orçamentais no seu funcionamento corrente, foram instados pela administração central a compensar aqueles cortes com candidaturas aprovadas para ofertas de formação profissional.

De novo aqui a legitimação política da diferenciação curricular cada vez mais precoce se baseia na eficácia e na eficiência da administração de cada agrupamento (medida não só pelos resultados nos exames terminais, mas também pela empregabilidade dos jovens recém-formados, nem que seja em formas de trabalho ultra-precário ou em estágios curtos não remunerados) e da satisfação dos alunos, dos pais e dos empregadores. Dependendo desses resultados, o financiamento geral do agrupamento, pode ser maior ou menor.

Assim, os agrupamentos promovem estratégias de atratibilidade da sua oferta educativa, competem entre si pelos melhores alunos procurando por todos os meios não ter que acolher os “problemáticos”, especializam-se em determinadas áreas de formação e desenvolvem actividades de parceria com empresas, autarquias locais, ipss, associações de pais, faculdades e institutos superiores.

A questão central deixa de ser a educação de qualidade de todos e para todos e passa a ser o número total de alunos que conseguem ter em cada ano e em cada curso. Ou seja, conseguir induzir a procura de formação pode representar a continuidade dos cursos e da escola ou a sua extinção. À semelhança do que já vinha acontecendo no sector privado, o quase-mercado educativo público ganha assim contornos mais nítidos. Em vez da tradicional regulação do sistema público feito pela oferta passa-se para uma regulação determinada pela procura, aliás potenciada pelo efeito dos rankings e pela crescente disseminação do direito de escolha parental.

Do ponto de vista da administração educativa, este novo tipo de regulação feita pelo mercado implica e impõe uma nova hegemonia de preocupações gestionárias de cariz fortemente concorrencial entre agrupamentos e prioritariamente hierarquizado, competitivo e sancionador dentro de cada agrupamento. Abrem-se, por isso, novos e interessantes linhas de acção (e de investigação) dentro do campo da administração educativa.

Entramos assim no 3º domínio/tema: a redefinição do modelo de governance do sistema e dos seus actores.

A procura de melhores resultados, primeiro escolares mas de seguida económicos, está-se a impôr em todas as entidades que administram a educação, desde os agrupamentos de escolas públicas, até às escolas profissionais privadas, passando por serviços de educação e formação autárquicos, empresariais, sindicais e outros.

Tendo em conta o efeito conjugado da diminuição do investimento público e a submissão voluntária ou forçada às regras da oferta e da procura do quase-mercado educativo, todas aquelas entidades e, em particular os agrupamentos de escolas públicas, adoptam medidas de racionalização da despesa e modelos de gestão centrada na obtenção rápida de resultados económicos (e sociais) que compensem a perda de receita.

Essa autocontenção é, por outro lado, valorizada e promovida pelas orientações políticas gerais, pela opinião pública e pelo “pensamento económico” dominante.

No primeiro caso, em nome da legitimidade tributária, os sucessivos governos têm imposto à base do sistema o aumento do número de alunos por turma, mas determinam a redução acentuada de cargos dirigentes, de órgãos estatutários de representação e participação, de coordenação intermédia e de créditos horários para múltiplos fins. Ao mesmo tempo, nos normativos reguladores da direcção e da vida escolar, “simplificou” os procedimentos e processos (substituindo a eleição pela nomeação e reduzindo o âmbito eleitoral quando não tinha outra solução), e promoveu o aparecimento de gestores profissionais (embora limitando a escolha das escolas a docentes com experiência) que pudessem ser responsabilizados pela sua liderança, pelo seu projecto e pelos resultados escolares dos alunos.

Para o fazer, os sucessivos governos invocam a opinião pública e a opinião publicada pelos especialistas do new public management e da gestão empresarial. “Todos” convergem na necessidade da prestação de contas, já não através das formas tradicionais de avaliação do rendimento e progresso dos alunos mas por meio das demonstrações em volta do balanço económico, da execução orçamental e dos projectos vencedores de financiamento. Por conseguinte, a sua atenção foca-se sobre as problemáticas prioritárias da “liderança forte”, do “exercício da autoridade”, dos “prémios e penalizações” pelos resultados que se obtém ou não. Tudo em nome da defesa dos interesses dos “acionistas” que são os contribuintes…

Como se percebe, trata-se de uma clara aproximação ao modo de governo empresarial no contexto de um sistema cada vez mais multidualizado entre escolas do topo e do fim dos rankings, entre escolas com uma média elevada e com uma média baixa de capital económico e cultural, entre escolas que são ou não são TEIP, entre escolas com e sem contrato de autonomia, entre escolas urbanas e rurais, entre escolas com e sem alternativa pública e/ou privada próxima, entre escolas com e sem resultados económicos anuais positivos, etc.

Concluindo, podemos afirmar que o campo das políticas e da administração educacional está em mudança. São já muito claros alguns sinais do sentido dessa mudança. Alguns aparecem-nos como ambição de fazer melhor, outros constituem claras limitações e até regressões sobre avanços que se julgavam irreversíveis Provavelmente, uma avaliação intencional e sistemática mostraria que, no meio de algumas forças, há fortes ameaças ao cumprimento dos imperativos constitucionais da escola pública. Por isso, porque é necessário saber mais, formar e informar mais, julgamos que as finalidades estatutárias do Forum Português de Administração Educacional não só mantêm a sua plena actualidade como merecem um renovado impulso mobilizador.

[1] Lima, Licínio (2012). Elementos de hiperburocratização da administração educacional. In C. Lucena & J. Junir (orgs), Trabalho e educação no século XXI: experiências educacionais. S. Paulo: EJR Xamã Editora.

 

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