Educação e Municípios: questionamentos acerca da autonomia do poder local e da descentralização

Elvira Tristão

Doutorada em Educação | Autarca

 

O processo de descentralização, consubstanciado na transferência de competências para as autarquias, caracteriza-se pelo prolongamento no tempo, numa dinâmica de avanços e impasses. A par do avanço provocado pelo mais recente acordo entre o PS e o PSD, com a publicação da Lei 50/2018, de 16 de agosto, vive-se agora o impasse da espera da publicação dos diplomas que regulamentarão cada um dos setores objeto de descentralização de competências para os municípios, comunidades intermunicipais e freguesias. Esse impasse é vivido pelos atores políticos com diferentes expectativas e perceções, não isentas de tensões e reservas quanto ao modo e aos efeitos do processo de descentralização sobre o território nacional e sobre as instituições. Teme-se, por um lado, que aumentem as assimetrias no que respeita à qualidade do serviço educativo no território nacional e, por outro lado, receiam-se as perdas de autonomia do poder local, mas também das escolas.

No longo processo de descentralização de competências na área da educação, é importante ter presente a existência de uma relação histórica dos municípios com as escolas. De facto, a primeira vaga de descentralização de competências pelo Estado central, já no século XIX, incumbiu aos municípios a manutenção das escolas, bem como o pagamento das rendas e dos vencimentos dos professores. Porém, é principalmente à relação dos municípios com as comunidades que pretendo dar relevo. Para isso, esclareço que o conceito de educação, enquanto ação humana organizada, se concretiza através de três modalidades distintas: a educação formal, a educação não formal e a educação informal. E é sobretudo na dimensão da educação não formal que os municípios têm feito uso da autonomia para investimentos importantes no domínio do desenvolvimento sociocultural. Mas voltemos à dimensão formal da educação e ao processo de descentralização para melhor “separarmos as águas”.

Na categorização de João Pinhal[1], aos municípios foram sendo devolvidas competências relativas à conceção e ao planeamento do sistema educativo; competências relativas à construção e gestão de equipamentos e serviços e competências relativas ao apoio aos alunos e aos estabelecimentos. Assim, no plano normativo e num quadro de subsidiariedade, os municípios passaram a ter competências no âmbito da provisão da educação formal, ao nível das infraestruturas, da negociação da oferta e dos apoios educativos. Já para Sousa Fernandes[2], estas são as tarefas educacionais estabelecidas por lei. No entanto, este autor contempla três outras categorias: as atividades autorizadas por lei, as atividades e apoios educativos de iniciativa dos municípios e as atividades de mediação política. Para Sousa Fernandes, a autonomia municipal permite levar a cabo ações de desenvolvimento sociocultural da população, quer por iniciativa própria, quer motivadas por pressões e solicitações. Também João Pinhal se refere a esta atuação dos municípios, na categoria das “não competências”, enquanto estratégias que visam combater as desigualdades e resolver os problemas locais, promovendo o desenvolvimento de um conjunto de intervenções junto da comunidade educativa para além do que está estipulado legalmente e indo para além da Educação formal.

É no quadro dessa autonomia – que lhes é conferida pela constituição, e pela carta europeia da autonomia local – que os municípios desenvolvem políticas locais que consubstanciam modalidades de educação não formal e informal e, não raras vezes, dão um contributo importante para as dinâmicas locais da educação formal.

O poder local assume-se como meio educativo envolvente, agente educativo e conteúdo educativo. Os equipamentos coletivos que colocam ao serviço dos munícipes, na área da cultura e do desporto, os recursos técnicos afetos às políticas de desenvolvimento social, bem como as suas iniciativas, constituem, assim, esse misto de estrutura e agência que contribui para o desenvolvimento territorial e, deste modo, tem intervenção educativa.

Na área da cultura, os municípios têm vindo a definir estratégias de mediação assentes em fóruns de negociação de conteúdos que enriquecem os curricula, com a oferta de espetáculos negociados com os professores, quer porque abordam temáticas dos conteúdos programáticos, quer porque se inscrevem em estratégias comunitárias de desenvolvimento de competências de cidadania. Os serviços educativos afetos aos equipamentos culturais municipais – como museus, bibliotecas e salas de espetáculos – programam muitas vezes as suas atividades com o foco no público infantojuvenil, propondo que os mesmos se realizem no âmbito das atividades de complemento curricular. Noutros casos, desenvolvem projetos em sala de aula, em coadjuvação com os docentes titulares de turma, visando o desenvolvimento de competências pessoais e interpessoais. Estes projetos podem assumir um carácter mais pontual ou mais regular consoante as propostas e o grau de adesão por parte dos docentes e das escolas.

Também os equipamentos desportivos municipais são frequentemente disponibilizados para as escolas a fim de reforçar as condições da prática da educação física, com a deslocação dos alunos e professores para pavilhões, campos desportivos e piscinas municipais.

Nos exemplos apresentados, os municípios têm tido uma intervenção no domínio da educação formal, ainda que mediada pelos docentes e pelas escolas.

Mas é sobretudo na área da infância e juventude que os municípios têm desenvolvido projetos de educação não formal. É o caso dos municípios que asseguram às famílias programas de atividades nas interrupções letivas, ou que desenvolvem atividades culturais e desportivas ao fim-de-semana ou no horário extraescolar.

No âmbito do apoio ao associativismo, a valorização da componente de formação dá conta da intencionalidade educativa que os municípios imprimem às políticas desportivas ou culturais. Atente-se, por exemplo, no apoio que os municípios dão a projetos associativos ligados à formação musical e à formação desportiva, áreas justamente às quais a administração central tem dado menor atenção, ocupando um espaço menor nos curricula e com idêntico desinvestimento ao nível das infraestruturas e equipamentos das escolas públicas. E, deste modo, as autarquias e o universo associativo têm assumido, em doses e modalidades distintas de contexto para contexto, uma função compensatória no âmbito do currículo não formal.

Outras vezes, essa função compensatória é assumida no domínio do apoio às famílias, sendo cada vez maior o número de autarquias que, associadas a instituições de ensino superior ou a peritos ligados a outro tipo de organizações, empreendem ações de educação parental que procuram dar resposta a problemáticas diagnosticadas no seio de instituições comunitárias como é o caso das comissões de proteção de crianças e jovens em risco ou os grupos de trabalho constituídos no seio das dinâmicas das redes sociais municipais.

Igualmente crescente tem sido o papel dos municípios nos programas de intencionalidade educativa que se inscrevem no paradigma da formação ao longo da vida, quer enquanto entidades promotoras de projetos de envelhecimento ativo para a população sénior, quer enquanto parceiros que apoiam as associações inscritas na rede das universidades séniores, com a cedência de espaços ou a utilização de equipamentos culturais e desportivos onde estas desenvolvem as suas atividades educativas.

E se, por um lado, determinados projetos de intencionalidade educativa ocorrem no contexto da autonomia local dos municípios, em estreita interdependência com as escolas e outras instituições locais, outros há que são induzidos pela administração central e regional em contextos de oportunidade de financiamento. Neste último grupo, podemos referir – a título de exemplo – os projetos de intervenção enquadrados no plano nacional de promoção da qualidade das aprendizagens (para efeitos de financiamento comunitário apelidados de projetos de combate ao insucesso escolar), na maioria do território nacional, intermediados pelas comunidades intermunicipais, atores emergentes na área da educação por via da sua especialização na captação de financiamento comunitário, seja do FEDER, seja, mais recentemente, do FSE.

Noutro âmbito, os municípios são convidados a ter um papel subsidiário em programas da administração central, como é o caso das orientações da Rede das Bibliotecas Escolares que, ao promoverem a criação de redes concelhias assentes em catálogos coletivos e no Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares (SABE) por parte das bibliotecas municipais, induzem a intervenção municipal num domínio onde a educação formal e a educação não formal têm fronteiras permeáveis.

Em jeito de conclusão, ou de abertura para outro patamar de discussão, o que me apraz registar é que o alargamento de competências dos municípios no setor da educação é muitas vezes o resultado de avanços que se dão por via da autonomia do poder local alimentada por relações de forte interdependência com as instituições e atores locais, em políticas de sentido bottom-up. Assim, os municípios veem aprofundada a sua participação na educação, para lá da educação formal, mas também em domínios onde a fronteira entre o formal e o não formal é ténue.

Paralelamente, sempre que o aprofundamento da descentralização de competências para os municípios resulta de políticas top-down, esta delegação é encarada com desconfiança, com a consciência de que o que é proposto reduz as dinâmicas de autonomia e reforça o papel dos municípios enquanto prestadores de serviço da administração central, que decide e avalia. As questões financeiras também arrastam muitas dúvidas quanto à capacidade de todos os municípios prestarem um serviço educativo de qualidade, com garantias de equidade aplicadas ao território nacional.

Apesar da minha intenção de procurar dar relevo ao papel dos municípios na modalidade da educação não formal, a permeabilidade que existe entre esta e a educação formal, isto é, escolar, é muitas vezes efetiva, mas obliterada por categorias de análise demasiado estanques. As fortes relações dos municípios com as comunidades, bem como as políticas nacionais de territorialização educativa com o foco na relação das escolas com o meio envolvente, têm, de facto, tornado cada vez mais permeáveis as fronteiras entre a educação formal e a educação não formal.

No que concerne ao aprofundamento do papel dos municípios no setor da educação, parece-me difícil separar dois conceitos: o da autonomia e o da descentralização. Se tem sido com recurso à autonomia do poder local que se tem aprofundado a ação das autarquias na educação não formal, tem sido sobretudo por via das medidas descentralizadoras do Estado central que os municípios têm visto alargadas as suas competências na educação escolar.

Neste sentido, levantam-se-me duas questões que esbatem a intenção inicial de foco exclusivo na área das “não competências”. Sempre que as autonomias locais aprofundam a sua intervenção educativa, estão ou não a criar contextos para novos avanços de descentralização educativa decretada? Ou será que esta descentralização vem acompanhada de mecanismos de recentralização que visam controlar as autonomias locais?

Quaisquer que sejam as respostas a estas duas questões, estejamos certos de que o papel dos municípios na área da educação é transversal a todos os domínios da sua intervenção, desde a cultura, o desporto e a juventude, passando pela ação social e saúde, mas também pela administração e planeamento urbanístico ou pelas questões ambientais relativas ao uso do espaço público ou dos resíduos e do saneamento. A administração da Polis é, em sim mesma, um ato educativo, porquanto “a construção da cidade” se faz em contexto, com os agentes e através da objetivação de conteúdos, e os seus destinatários – diretos ou indiretos – são o universo dos indivíduos que fazem parte das comunidades.

 

[1] [1] Pinhal, João (2006). “A intervenção do Município na Regulação Local da Educação”. In A Regulação das Políticas de Educação – espaços, dinâmicas e atores, Lisboa: Educa.

[2] Fernandes, António Sousa (2005) “Contextos da Intervenção Educativa Local e a Experiência dos Municípios Portugueses”. In Formosinho, J. e Fernandes, A. S., Machado, J., Ferreira, F.I., Administração da Educação – Lógicas Burocráticas e Lógicas de Mediação. Porto: Edições ASA.

 

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