Henrique Ramalho
Escola Superior de Educação de Viseu | Instituto Politécnico de Viseu
Face à análise que se tem vindo a impor aos sucessivos regimes de autonomia, direção e gestão da escola pública portuguesa, verifica-se a tendência para estarmos a assistir a um desinvestimento da democratização do governo periférico das escolas, subsidiado por processos de “escolha” das lideranças e dos membros que compõem os respetivos órgãos de direção e gestão, na base de critérios e pressupostos centralmente definidos.
Progressivamente instituídos com a função de reorganizar o centro administrativo, com vista à recentralização política do sistema educativo, aqueles processos de “escolha” têm, em última instância, sofrido um realinhamento legislativo por um crescente elogio das lideranças unipessoais recrutadas e selecionadas, retoricamente desaguado em esquemas disfarçados de eleição (diretor) e, subsidiariamente, de órgãos dotados de uma colegialidade substancialmente construída na base da designação (conselho pedagógico) ou cooptação/indicação (conselho geral) dos seus membros.
A tal tendência parece corresponder, também, uma uniformização estrutural da escola pública portuguesa, insistindo-se, com uma considerável e crescente acutilância, nos pressupostos da eficácia, eficiência, performatividade, qualidade, avaliação, prestação de contas e da consequente reestruturação em conformidade do Sistema.
No seu ato mais recente, o legislador optou (e tem continuado a optar) pela institucionalização da gestão executiva de matriz unipessoal, a par de outros órgãos, cujos colégios contemplam membros que, mais do que eleitos, passaram a ser designados e cooptados por força das suas inerências funcionais, em que para o exercício das quais, na maior parte dos casos, também não foram eleitos em colégios eleitorais suficientemente clarificados e vigorosos.
No que concerne ao titular do órgão executivo, recrutado a partir de um procedimento concursal e de posterior seleção (a que o legislador, retoricamente, dá o nome de eleição), damo-nos conta de uma substancial ascendência do diretor sobre o órgão de gestão pedagógica. Tal ocorre sob a égide de um gestor eficaz e eficiente, no estrito cumprimento de uma burocracia periférica do tipo monocrático centrada na figura do diretor, sedimentada por procedimentos de gestão e avaliação internas, ainda que amplamente controlados por esquemas de heterorregulação a partir do mando central. Eis-nos chegados ao ponto da operacionalização do perfil de diretor guardião da implementação em conformidade. A propósito, por exemplo, não nos é absolutamente estranha uma conexão forte da função do diretor ao ideário da Teoria do Capital Humano e do valor económico da educação, em geral, e da escola, em particular, de forma a demonstrar a universalização da utilidade produtiva do fator humano na escola pública.
No caso do conselho pedagógico, a sua posição (real) no organograma da escola corresponde a uma condição de subalternização ao imperativo tecnicoburocrático e eficientista do diretor, com capacidade para, por exemplo, presidir ao órgão e para designar pessoas para ocupar determinados cargos que as colocam, de forma automática, no órgão (por exemplo, os coordenadores de departamento curricular e os diretores de turma, para além da capacidade que lhe é conferida para dirigir superiormente os serviços administrativos, técnicos e técnico-pedagógicos).
Por seu lado, as logicidades discursivas atribuídas à mais recente configuração orgânica do órgão de direção da escola pública portuguesa, sob a designação de conselho geral, impelem-nos a fazer uma interpretação do seu funcionamento baseada na agenda do movimento da school accountability. Na designação característica dos seus membros prevalece a indicação e a cooptação, além de uma tímida alegação da eletividade de alguns representantes (docentes, alunos e pais/encarregados de educação) muito pouco esclarecida. Ou seja, o legislador explicita e torna definitivos os processos de cooptação e indicação, mas mantém os processos de eleição num limbo debilmente clarificado. Tudo indica que a formalização da ação do conselho geral coincide com a narrativa da public-choice theory, ao mesmo tempo que lhe é formalmente cometida a função de exigir ao diretor a capacidade de dar resposta (responsiveness). Neste caso, o legislador perspetiva o diretor na condição de este poder ser responsabilizado ex post facto perante um colégio de accountability formalmente instituído a partir de cima, na decorrência de uma perspetivação do conselho geral como último reduto da accountability escolar. Congruentemente, este órgão é dotado da capacidade para exercer uma tecnicolegialidade instrumental, configurando, em forma e em substância, a sede de uma accountability comunitária, formal e mútua alinhada mais com as obstinações da produtividade escolar para uma sociedade de feição mercantilista e menos com as conceções dos professores e outros atores internos sobre o ato educativo.
Então, sob o jugo de um neocentralismo educacional, deparamo-nos com o facto de a própria democracia representativa acabar por ser subjugada por uma agenda de gestão das escolas amplamente marcada pelo recrutamento, seleção, cooptação, indicação e inerência de funções, onde a eletividade perde todo o seu significado democrático e operacional, resultando numa espécie de captura da decisão de feição, exclusivamente, tecnicista por colégios determinados a priori e cada vez mais restritos em quantidade e em qualidade.
Eis o efeito da colonização e fragilização ou esvaziamento dos processos de eleição, com importantes repercussões ao nível da reconfiguração da escola pública portuguesa como campo francamente despolitizado, em que a redução da possibilidade de ser eleito parece fazer-se acompanhar, em igual medida, pela diminuição da capacidade de exercer o direito de eleger.
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