Há tantas autonomias!

Guilherme Rego da Silva

Universidade do Minho, Instituto de Educação | Ex-presidente da direção do FPAE

O conceito de “autonomia da escola” impôs-se em Portugal, desde finais do século passado, como conceito central, no que diz respeito aos discursos e às análises sobre o sistema educativo, mais do que no respeitante às práticas administrativas que mantêm um grau elevado de centralização, certamente.

O facto de estarmos perante um conceito que é claramente mais relevante do ponto de vista da administração como formação e como investigação do que da administração como prática já, de alguma forma, denuncia a sua natureza teórica e ideológica.

Um conceito deste tipo pode ser analisado a partir das diferentes ideias de base (ideologemas) que o compõem. Este texto irá dar atenção apenas a uma dessas ideias: a noção de unidade.

Acompanhando a generalidade dos discursos, até os discursos políticos (este texto é redigido em setembro de 2019, época de campanha eleitoral), vemos que o modo como se usa o conceito de “autonomia da escola” pressupõe que existe uma unidade administrativa “a escola” na qual reside a autonomia. A autonomia é em si uma unidade (teórica, discursiva, eventualmente prática) e a autonomia manifesta-se na escola (unidade educativa). No discurso, a escola tem autonomia e a autonomia reside na escola.

De facto, vamos aqui argumentar que a autonomia não é unitária, é fragmentária e plural e encontra-se dispersa pelo sistema educativo.

Desde logo, o foco de autonomia não pode ser a escola, porque esta já não é a unidade de gestão. Quando falamos de “autonomia da escola” estamos, em termos práticos, a referir-nos à autonomia do agrupamento de escolas que é a atual unidade educativa com competências de gestão, por esse motivo colocamos neste texto a “autonomia da escola” entre aspas porque concordamos que se continue a falar dela, mas apenas num sentido figurado.

Podemos falar de uma autonomia de cada uma das escolas, em relação ao seu agrupamento, recuperando aí um conceito real (não figurado) de autonomia da escola? Para isso teremos que nos reportar aos estudos sobre o coordenador de estabelecimento. O tipo de autonomia que este/esta possa ter, será sempre muito limitado.

Já sobre a autonomia do agrupamento de escolas podemos falar com mais segurança. A autonomia do agrupamento é também uma realidade plural. Será difícil conceber a existência de uma autonomia do agrupamento de escolas se o diretor ou diretora do agrupamento e se o conselho geral não tiverem uma autonomia significativa. Como exercício de análise até se pode deslocar o ponto de observação e colocar como hipótese que a autonomia que estes dois órgãos tiverem é a autonomia que tem o agrupamento no seu conjunto.

A autonomia dos agrupamentos de escolas leva-nos a falar da autonomia do diretor ou diretora. Parece lógico afirmar que, perante as instâncias de governo, a nível central e municipal, o diretor não pode ter mais autonomia do que a que tem o agrupamento.

E, neste ponto, sem esquecer o Ministério da Educação que, certamente não sendo omnipotente, tem uma importante autonomia de decisão em relação à Lei de Bases do Sistema Educativo e a todo o quadro jurídico e regulamentar. Naturalmente que a autonomia do Ministério é de longe a mais dilatada e significativa, com capacidade para condicionar, enquadrar e limitar a autonomia de outros poderes autónomos.

Há também a autonomia do município que, por vias formais e informais, tem uma capacidade crescente de influência sobre os agrupamentos, supõe-se que ainda mais forte quando fora dos maiores centros urbanos ou seja, tem autonomia de decisão em vários aspetos que dizem respeito à gestão dos agrupamentos.

Da Inspeção fala-se pouco mas, quem acompanha o que se passa nos agrupamentos, fica com alguma ideia de que hoje a Inspeção atua muito. A Inspeção pode ter sido um dos principais “beneficiados” com a desativação das Direções Regionais de Educação (DRE). Era clássico, e foi estudado, o recurso constante dos antigos Conselhos Diretivos das escolas que telefonavam às DRE assiduamente para perguntar como proceder nesta e naquela situação prática. Atualmente parece haver visitas assíduas da Inspeção que não apenas inspeciona mas orienta e dá diretivas quanto ao modo de proceder desde o plano pedagógico ao financeiro. Se, como parece, com a desativação das DRE houve um alargamento da capacidade e autonomia de intervenção da Inspeção, que deixa de estar balizada e condicionada pelas orientações que as DRE davam diretamente às escolas, então esta nova era da “autonomia da escola” tem efetivamente algum sabor a (re)centralização…

Em conclusão, durante as ultimas décadas foi difundida a ideia de que o Ministério da Educação, por vontade boa, outorgava às escolas a autonomia a qual se aprofundava através de documentos de contrato. Neste texto propõe-se como ideia alternativa que a autonomia existente se encontra dispersa por diferentes níveis e instâncias do sistema educativo e tanto pode ter uma legitimidade legal e formal como uma legitimidade prática e informal quer-se dizer, tanto se pode sustentar na autonomia outorgada como na autonomia arvorada, sendo esta uma solução expedita de tipo clandestino (João Barroso), dita de infidelidade à norma legal (Licínio C. Lima), com uma existência prática ainda não detetada ou ignorada pelo poderes de facto.

Com este texto não se pretende desvalorizar o conceito de autonomia na educação, antes pelo contrário. Pretendemos lembrar que a autonomia diz respeito a todos nós. Na escola os docentes devem ter uma margem de autonomia suficiente para realizar o seu trabalho pedagógico. A autonomia não pode ser uma coisa que a lei outorgou à escola e se encontra empacotada num armário que está junto à secretária da diretora ou do diretor na escola-sede do agrupamento. E a educação só faz sentido como um esforço coletivo para o desenvolvimento da autonomia do educando, de todos os educados e de cada um deles, na sua pluralidade.

Download do texto de opinião.

Nota: A opinião aqui expressa é da inteira responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).