Inclusão da educação dos 0 aos 3 anos no sistema educativo – uma questão de política educativa, em que as “ideias” contam

Inclusão da educação dos 0 aos 3 anos no sistema educativo – uma questão de política educativa, em que as “ideias” contam

Carlos Pires

Professor da Escola Superior de Educação de Lisboa | Presidente da Direção do FPAE

Como cidadão com direito a emitir opinião, profissional de educação, formador de profissionais de educação e interessado na análise das políticas educativas, expresso a minha posição favorável à inclusão dos 0 aos 3 anos no sistema educativo português. Considero, assim,  que a educação das crianças dos 0 aos 3 anos deve ser equacionada como uma  questão de política educativa, como “problema político” (que ainda não é) inscrito na “agenda política” (o que ainda não aconteceu), legitimada numa “política pública” de educação (que ainda não é) tutelada pelo Ministério competente na área da Educação.

A educação dos 0 aos 3 anos continua a ser, “por definição institucional, um problema de apoio às famílias e de solidariedade social e não uma questão clara do “direito à educação” consagrado na Convenção dos Direitos da Criança” (Recomendação n.º 3/2011 de 21 de abril do CNE). Neste âmbito, o conceito de educação deveria ser entendido e assumido “não só como consequência, mas também como processo; como o processo pedagógico representa a promoção explícita e sistemática de atividades com crianças – intencionalidade educativa – visando propositadamente a sua aprendizagem e desenvolvimento” (Formosinho &  Oliveira-Formosinho, 2013, p.27). Nesse sentido, a defesa da tutela pedagógica única pelo Ministério da Educação tem subjacente a implementação de um conjunto de normas e princípios que garantam universalmente a “intencionalidade educativa”. Tal como “é realçado, nos documentos publicados pela Comissão Europeia e pela OCDE sobre a qualidade na educação de infância, (…) a aprendizagem e a educação começam a partir do nascimento” (Folque & Vasconcelos, 2019, p. 280). Trata-se do direito à educação desde o nascimento, ainda que respeitando a afirmação da creche como “resposta simultaneamente educativa e social (ou de âmbito socioeducativo” (p.280).

A “educação dos 0 aos 3 anos”, apenas muito recentemente (2021 e 2022), entrou nos debates parlamentares. Contudo, foi remetida para “ângulo morto”, ofuscada e preterida pelo importante debate sobre a gratuitidade da frequência das creches, enquanto medida de política social de apoio às famílias com crianças naquele grupo etário, resultado da assunção desta iniciativa como bandeira eleitoral nos programas de vários partidos políticos e do próprio Programa de Governo.

Apesar da longa e consolidada trajetória de iniciativas, de problematização e fundamentação, de militância, protagonizadas por atores institucionais, profissionais e investigadores e do aparente consenso manifestado na retórica dos discursos dos deputados dos partidos com assento parlamentar , a Assembleia da República não aprovou as propostas de alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), que permitiriam a inclusão da educação dos 0 aos 3 anos no sistema educativo português. Essa alteração não foi considerada prioritária e premente, como aconteceu em quatro[1] momentos, desde a aprovação da lei, em 1986. Curiosamente, direta ou indiretamente, três desses momentos relacionaram-se com a educação de infância: i) no âmbito da qualificação académica e profissional dos/as educadores/as de infância; ii) e no âmbito da universalização da oferta de educação pré-escolar.

No primeiro caso: a) através da Lei n.º 115/1997, de 19 de setembro (Artigo 31.º), os/as educadores/as de infância passaram a adquirir a qualificação profissional através de cursos superiores conferentes do grau de licenciatura; e b) pela Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto, que altera os graus académicos, o Regime Jurídico de Habilitação para a Docência, aprovado em 2007 (alterado em 2014), estabeleceu como habilitação profissional dos/as educadores/as de infância, o grau de mestre.

No segundo caso, a Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto (alterada pela Lei n.º 65/2015, de 3 de julho) estabeleceu o princípio da universalidade progressiva da oferta de educação pré-escolar.

Tudo parecia apontar para a existência de condições estruturais e de um argumentário fundamentado para colocar a educação dos 0 aos 3 anos na agenda política:

  • o financiamento para a progressiva gratuitidade das creches e universalização da oferta de educação pré-escolar;
  • a qualidade da formação dos/as profissionais;
  • a fundamentação publicada e a pressão exercida pela comunidade académica e profissional;
  • a ação do Conselho Nacional de Educação (CNE) concretizada em reflexões, debates, estudos e recomendações, com especial destaque para a Recomendação n.º 3/2011, de 21 de abril redigida por Teresa Vasconcelos;
  • as recomendações de organizações internacionais como a OCDE;
  • a iniciativa constitucional de submissão de uma Petição Pública (Petição n.º 223XIV2ª) assumida e assinada por dezenas de milhar de cidadãos (encabeçada por reconhecidas e prestigiadas individualidades representativas de diferentes setores e estatutos sociais e profissionais) e promovida pela Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI);
  • a explicitação de intencionalidades de alguns partidos políticos, quer nos programas eleitorais para as legislativas quer na submissão de Projetos de Lei por três partidos com assento parlamentar, decorrentes da apreciação e debate da referida Petição.

Contudo, a “janela de oportunidade” para inscrever a “educação dos 0 aos 3 anos” na agenda política não se abriu!

O Parlamento, é uma “arena pública”, mais precisamente, “político-institucional”, a instituição no seio da qual “os problemas sociais são discutidos, selecionados, definidos, enquadrados, dramatizados, condicionados e apresentados ao público” (Ribémont et al., 2018, p. 97), em que os atores se mobilizam para construir problemas públicos e inscrevê-los na agenda política. Contudo, nem todos os problemas se tornam públicos, uma vez que no seio das “arenas públicas” há “princípios de seleção” que permitem a emergência de uns problemas em detrimento de outros (Hassenteufel, 2008).

Concretamente, sobre a problemática da educação dos 0 aos 3, parece ser decisiva a importância das ideias, “enquanto variáveis explicativas” (Kübler & Maillard, 2009) e do seu peso na determinação de prioridades políticas, bem como na perceção dos problemas. Assim, infere-se que a inclusão da educação do 0 aos 3 anos no sistema educativo não é considerada como “problema social”, que mereça ser catapultado para “problema político”, sobretudo sem o papel de “mediação” ou “tradução” do Governo, através do Ministério da Educação, por se reportar a outros referenciais, ideias e valores, a partir dos quais constrói a perceção dos problemas.

Por sua vez, a questão do público e do privado na garantia de um eventual  serviço público de educação dos 0 aos 3, coloca-se como um obstáculo  e motivo de reservas para uma eventual tomada de decisão parlamentar.

[1] O quarto e mais recente incidiu sobre a possibilidade de outorga do grau de Doutor pelos Institutos Politécnicos.

Referências:

Folque, A., & Vasconcelos, T. (2019). Que educação para as crianças dos 0 aos 3 anos? Em Estado da Educação 2018 (pp. 278-289). Conselho Nacional de Educação (CNE).

Hassenteufel, P. (2008). Sociologie Politique: L’action publique. Armand Colin.

João, F., & Oliveira-Formosinho, J. (2013). Políticas educativas e formação para crianças dos 0 aos 6 anos em Portugal e no Brasil. Em M. J. Cardona, & C. Guimarães (Coord.), Avaliação na Educação de Infância (pp.25-60). Psicossoma.

Kübler, D., & Maillard, J. (2009). Analyser les Politiques Publiques. Press Universitaire de Grenoble.

Ribémont, T., Bossy, T., Gourgues, G., & Hoeffler, C. (2018). Introdution à la Sociologie de L’Action Publique. De Boeck Superieur

 

Nota: A opinião aqui expressa é da inteira responsabilidade do(s) seu(s) autor(es). 

texto de opinião_Carlos Pires