O sentido reticular da autonomia da escola e o projeto educativo local.
Nuno Fraga
Universidade da Madeira
O Despacho n.º 5908/2017, de 5 de julho reanimou no ano letivo de 2017/2018 o eterno debate do posicionamento da autonomia da escola nos domínios, essencialmente, pedagógico e curricular, colocando-a perante a possibilidade de concretização de uma experiência pedagógica assumida na implementação de um projeto de autonomia e flexibilidade curricular nos ensinos básico e secundário. À experiência pedagógica estava associado o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, doravante Perfil, que no seu despacho de criação (Despacho n.º 6478/2017, de 26 de julho) apresentava-o como um “referencial para as decisões a adotar por decisores e atores educativos ao nível dos estabelecimentos de educação e ensino e dos organismos responsáveis pelas políticas educativas.”
Lê-se no Perfil que “Docentes, gestores, decisores políticos e também todos os que, direta ou indiretamente, têm responsabilidades na educação encontram, neste documento, a matriz que orienta a tomada de decisão no âmbito do desenvolvimento curricular, consistente com a visão de futuro definida como relevante para os jovens portugueses do nosso tempo” e que se apresenta construída e sedimentada a partir de uma cultura científica e artística de base humanista. Neste palimpsesto reformista surgem, por um lado, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (2017) e o Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho que, terminada a experiência pedagógica enunciada no Despacho n.º 5908/2017, estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário, os princípios orientadores da sua conceção, operacionalização e avaliação das aprendizagens.
O primeiro, entre outros pontos de partida, assume “o facto de a escola dever estar atenta aos problemas da sociedade, preparando as novas gerações para uma convivência plural e democrática”, bem como a “valorização das especificidades e realidades locais em detrimento de abordagens de temáticas abstratas e descontextualizadas da vida real”. O segundo, no âmbito dos seus princípios orientadores desvela a necessidade de “Promoção da educação para a cidadania e do desenvolvimento pessoal, interpessoal, e de intervenção social, ao longo de toda a escolaridade obrigatória” (Artigo 4, alínea r.).
Importa neste cenário que aloca à escola a promoção da educação para a cidadania, emparelhada com a possibilidade de se flexibilizar as práticas pedagógicas, as suas metodologias e processos, repensar a sua operacionalização no campo da territorialização educativa (Barroso, 2016), do espaço público de educação (Nóvoa, 2001; 2009) e da cidade educadora (Villar, 2008), enquanto comunidade maior de aprendizagem. É um lugar comum, e não menos preocupante por isso, escutar-se que a escola democrática está assoberbada pela burocracia dos processos que a minam no jogo de plataformas digitais que a montante se assumem como mecanismos de controlo. A defesa pela construção de um espaço público de educação possibilita por um lado que se inverta “as tendências de transbordamento da escola” (Nóvoa, 2009, p. 7) a quem tudo se pede, e por outro lado, ao possibilitar que a aprendizagem seja o seu foco de ação, para a qual todos os processos pedagógicos devem convergir, assumir-se a comunidade, o local, o território, como espaços mais amplos onde a educação também acontece e onde os seus projetos, também educativos, se combinam com a natureza político-pedagógica da ação da escola. Numa aproximação à proposta de Barroso (2016) que nos apresenta o conceito de ““territorialização da ação pública” (em que a política é vista como uma construção social fruto da interação dos seus diversos agentes)” (p. 22), perspetiva-se que nestes novos cenários e experiências pedagógicas que se alinham em torno do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória haja espaço para que os tempos e os espaços do local possam, também eles, assumirem-se como atores essenciais nos processos de significação, funcionalidade e intencionalidade das aprendizagens da escola. É certo que os processos de territorialização educativa não se dissociam da imagem da educação como arena política, onde diversos poderes geram conflitos, mobilizam interesses e dinâmicas de negociação. Todavia, à educação deste século importa conectar os espaços onde as aprendizagens são processos latentes e isso acontece tanto na sala de aula, como no museu, nos escuteiros, na Internet, e onde haja processos de mediação (Freire, 2009).
Territorializar não é municipalizar. É sobretudo criar dinâmicas locais que permitam uma ação concertada entre os seus diversos atores com objetivos em comum e com recursos, físicos e materiais, que combinados geram, e permitam-me a expressão, valor acrescentado. Não se trata de uma espécie de voluntarismo local, do local e para o local, mas antes a organização consciente, crítica e epistemologicamente fundamentada, dos saberes acumulados nos diversos espaços do território e que coordenados são catalisadores de aprendizagens e de conhecimento.
A escola não se assume como um laboratório fabril, mas antes, como um sistema aberto que focado na aprendizagem dos alunos, reconhece no projeto educativo local mais-valias para a concretização do seu projeto educativo. A cidade, o local ou a comunidade que a escola coabita diz-se educador porque ao contemplar uma visão sistémica do seu espaço (que é local como global) enquadra na sua ação e no seu projeto educativo uma intencionalidade e uma funcionalidade práticas necessárias à execução, planificação e desenvolvimento, de projetos participados e à consequente inclusão, envolvimento e implicação dos cidadãos em todo o processo. A assunção de um projeto educativo local, político-pedagógico por natureza, não demite a escola e o local das respetivas funções, mas antes os implica e os responsabiliza na construção de um ideário educativo mais amplo e com mais recursos.
O projeto educativo local dialoga com os projetos educativos de escola. Não lhes retira autonomia. Antes, amplia as possibilidades da sua ação pedagógica, contribuindo para a flexibilidade dos processos curriculares e pedagógicos, para a gestão partilhada de recursos e para a construção alargada de uma comunidade de aprendizagem local.
Se é certo que a atual narrativa da política educativa direciona o debate para o campo da autonomia e da flexibilidade curriculares, recuperando em parte o debate gerado na última década do século XX e no início do século XXI, não parece ser menos verdade que tal narrativa coloca à escola desafios maiores, pois nos implica enquanto profissionais da educação a agir, a responsabilizar-nos, a ousar pensar e fazer diferente, na ótica da inclusão e de uma escola (mais) democrática. Se, por um lado, o enquadramento do projeto educativo local pode contribuir para a escola ver ampliada as suas possibilidades de ação, pela rede alargada de parceiros e pelo potencial educador que isso acarreta, por outro lado o Estado, assumido como agente interventor, não pode descurar outras narrativas por cumprir: 1) a valorização profissional dos professores; 2) a sua formação em contexto e ao longo do exercício da sua carreira profissional; 3) a problematização e transformação das lideranças escolares, por via de uma formação de qualidade e de uma concertação com a autonomia real das escolas; 4) a desburocratização dos processos de administração e gestão escolar e pedagógica; 5) o regime jurídico de autonomia das escolas; 6) o acesso ao ensino superior que, embora fique para outro debate, se torna obsoleto se considerarmos os princípios inscritos no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.
Pensar a autonomia da escola nesta perspetiva reticular que não se decreta mas antes se constrói colaborativamente e que encontra nos parceiros locais, recursos e campos de fazer e pensar complementares, permite alargar os horizontes dos processos pedagógicos, mas alerta-nos, igualmente, para a necessidade de repensar os seus processos de liderança e de gestão, na medida em que “não obstante a boa-vontade [as lideranças pedagógicas], têm uma influência, mediada, limitada e indireta, sobre os modos de trabalho dos professores, tendo dificuldades várias em gerar uma mudança das práticas profissionais docentes que estejam ao serviço de mais e melhores aprendizagens para todos.” (Alves & Cabral, 2019, p. 14)
Referências:
Alves, J. M. & Cabrail, I. (2019). Preâmbulo. In Roldão, M. C. (Org.) Quem lidera o Ensino e a aprendizagem nas escolas? Um estudo de caso múltiplo sobre lideranças pedagógicas. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.
Barroso, J. (2016). A administração local da educação: da descentralização à territorialização das políticas educativas. In Ferreira, A.; Peliz, M.; Félix, P.; Casas-Novas, T. (Org.). Processos de Descentralização em Educação. Lisboa: Conselho Nacional de Educação. (pp. 22- 36).
Freire, P. (2009). Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa (39.ª ed.). São Paulo: Paz e Terra.
Nóvoa, A. (2001). O espaço público da educação: imagens, narrativas e dilemas. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/4797.
Nóvoa, A. (2009). Educação 2021: Para uma história do futuro. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/670/1/21232_1681-5653_181-199.pdf.
Villar, M. C. (2008). A Cidade Educadora. Lisboa: Instituto Piaget.
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