João Estanqueiro
Associação Regional de Administração Educacional (ARAE) | Associado do FPAE
A propósito do título que deu recentemente mote ao V Colóquio Internacional de Ciências Sociais da Educação “EU VIM DE LONGE…EU VOU P’RA LONGE-50 anos de Educação em Democracia”[1], também eu não me poderia deixar de inspirar na letra e música de José Mário Branco com o trecho que escolhi para dar início a estes pequenos fragmentos de escrita:
“(…)
E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
Que não hesitei
E os hinos que cantei
Foram frutos do meu coração
Feitos de alegria e de paixão
(…)”
À minha volta observei que quase passaram cinquenta anos após a revolução dos cravos, da aprovação da Constituição de 1976, que decorreram mais de duas décadas após a publicação do diploma que aprovou o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos de educação e de ensino públicos da Região Autónoma da Madeira…e logo questionei qual seria a perceção dos professores e das professoras sobre a criação do Conselho da Comunidade Educativa (CCE), o “âmago” da democracia, “o órgão responsável pela definição orientadora da atividade da escola com respeito pelos princípios consagrados na Constituição da República, na Lei de Bases do Sistema Educativo e no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Será que vi esperança andar à solta? Cantei porventura hinos feitos de alegria e de paixão? Será que o órgão em análise é “percebido”, é “visto” pelos docentes como sinónimo de participação no poder de decisão, é um órgão em que os seus elementos constituintes são envolvidos na participação em decisões estratégicas ou apenas em decisões marginais?
Há alguns anos e para tentar interpretar esta realidade desenvolvemos um quadro teórico que permitisse compreender não só a escola como organização educativa, mas também a problemática da democracia, da participação, da autonomia, da centralização e descentralização administrativa. A abordagem metodológica ancorou-se essencialmente no inquérito por questionário e na análise de conteúdo.
A pouco tempo de celebrarmos o jubileu da democracia, ainda hoje questiono este órgão fruto do ventre de abril: figura de retórica ou retórica de figuras(?)[2] … assim foi o título escolhido na altura, balançando entre a aventura e a desventura do hoje, a euforia e disforia, quiçá, quem sabe se sublime (im)perfeição!?
Se quero proceder a alguma exumação? Não, há em mim, antes, uma bulimia pela exegese de cerimoniais e rituais instalados, interrogações inexauríveis para melhor compreender as “montras” acomodadas, uma necessidade de imergir na organização da hipocrisia (Brunsson, 2006)[3]…para logo emergir, recordando James March e Johan Olsen[4], DiMaggio & Powell[5]…e no processo de emersão, esbracejar no “modelo díptico” (Lima, 1998) da escola como organização, nessas “configurações híbridas” (Silva, 2011), “compósitas” (Derouet, 1992), “fractalizadas”, na sua natureza “políptica e constelar”, (Estêvão, 1998), na “multiplicidade de mundos”, de “(in)justiças”, de “direitos”, (Estêvão, 2004)…até que, chegado a terra firme, mais não contemplo que isomorfismo institucional! Sente-se o sussurrar de gramáticas diversas, de prosódias que inibem, a maioria a tresandar a mercado e que parecem querer escusar-nos de pensar!
E tu CCE, fruto do ventre de abril, que emergiste com uma semântica promissora, continuarás na “passerelle” a “dar parecer(es)”, a “apreciar(es)”, a “promover(es)”, a “propor(es)” … ou passarás do estrado da moda, para esse desígnio maior que te alcandorou em substância suprema desse ventre coberto de cravos vermelhos que canta Afrodite[6]? Sairás um dia da “passerelle” e decidirás em vez de apreciar, aprovarás em vez de promoveres e propores?
Atente-se nas palavras do patrono da educação brasileira a propósito de participação:
“(…) participação enquanto exercício de voz, de ter voz, de ingerir, de decidir, em certos níveis de poder, enquanto direito de cidadania (…)”.[7]
E neste pequeno texto de Afonso (2012, p. 50):
“Mesmo o presidente do agora designado conselho geral (…) nem sequer tem direito a uma pequena sala – o que, sem dúvida, se existisse, alguma coisa haveria de contar na economia das trocas simbólicas em que os espaços também têm significado. A este propósito, foi sempre com ar de surpresa, ou com um sorriso ténue mal disfarçado e incomodado, que alguns diretores que conheci reagiram à minha pergunta: “Qual é a sala do presidente do conselho geral?”
Se toda a linguagem é criação, do grego poiésis, poesia, assim foram, também, estes fragmentos de texto, porventura “ponte, passagem para a outra margem”, desafio pairando sobre o mar oceano que nos agrilhoa e que nos faz crer que a ponte não pode ser uma miragem, mas mais um desafio que torna imperativo a passagem para a outra margem, socorrendo-me da canção “Ribeira” dos Jafumega.
Fica a esperança encharcada nos ensinamentos do Andarilho da Utopia, que dos horizontes de possibilidades[8], homens e mulheres, sujeitos da história, pronunciem o mundo porque só assim se fazem, não no silêncio, mas nas palavras, no trabalho, na ação-reflexão (adaptado de Freire, 2002).
Sonho? Recordo a tocadora de harpa de Pessoa que deu mote a este título “(…) se ao menos pudesse beijar teu gesto sem beijar as tuas mãos, e beijando-o, descesse pelos desvãos do sonho, até que, enfim eu te encontrasse (…) não poder eu prendê-lo, fazer mais que vê-lo e que perdê-lo…E o sonho é o resto!…”
[1] Onde apresentei, em parceria com o Professor Virgínio Sá, uma comunicação à qual subtraí o título para este texto.
[2] Título da dissertação de mestrado em Ciências da Educação, Área de Especialização em Administração Educacional, Conselho da Comunidade Educativa – figura de retórica ou retórica de figuras? – Um estudo da representação dos professores, apresentado no Instituto de Educação da Universidade do Minho em 2018, sob orientação do professor Virgínio Sá.
[3] Com prefácio na edição portuguesa de Licínio Lima.
[4] A “expressão “novo institucionalismo” surge pela primeira vez em 1994 num artigo da autoria de James March e Johan Olsen.
[5] DiMaggio & Powell consideram o ano de 1977 como “a data de nascimento” do “novo institucionalismo” no campo dos estudos organizacionais (…).”
[7] Freire, P. (1993). Política e Educação. São Paulo: Cortez Editora, p.73.
[8] Expressão utilizada por Ana Maria Araújo Freire em Pedagogia dos Sonhos Possíveis-Paulo Freire. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU). A minha edição é de 2001.
Nota do FPAE: A opinião aqui expressa é da inteira responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).